quarta-feira, 9 de junho de 2010

Felicidade e a constituição




Autor: Ives Gandra Martins Filho
Ministro do Tribunal Superior do Trabalho (TST) e membro do Conselho Nacional de Justiça (CNJ)
Fonte: Correio Braziliense. Data: 8/06/2010.

Em 26 de maio passado, participei de audiência pública no Senado Federal, a convite do senador Cristovam Buarque e de meu tio, o maestro João Carlos Martins, para debater a proposta de emenda constitucional veiculada pelo Movimento + Feliz, capitaneado por Mauro Motoryn, que pretende a inclusão, em nossa Carta Magna, do reconhecimento do direito à felicidade. As reflexões que fiz, então, as explano neste artigo, em face da relevância do assunto.

Na teoria clássica, a finalidade do Estado é promover o bem comum da sociedade, considerado como o conjunto de condições que permite aos indivíduos atingirem o seu bem particular. Se o Estado propicia segurança, educação, saúde, trabalho, previdência, moradia e transporte, o indivíduo tem as condições mínimas para atingir a felicidade, a que todos os homens tendem.

No entanto, é preciso fazer a distinção entre fins e meios. O bem comum é a finalidade e os direitos sociais, os meios para promovê-lo. Nesse diapasão, não se pode colocar a felicidade como direito a ser garantido pelo Estado. O que é dever do Estado é assegurar os meios para que cada um possa chegar à felicidade.

Com efeito, ninguém pode dizer a outro "seja feliz", quando esse sentimento não brota de dentro. Pode-se ter tudo e não ser feliz, pois a felicidade é um sentimento de plenitude, que, como dizia Aristóteles, ao dedicar o Livro I de sua Ética a Nicômaco à questão da felicidade, apenas se alcança pela posse do bem adequado à natureza humana.

Georges Chevrot oferece-nos uma intuição que pode aclarar a questão: "Os prazeres são para os sentidos; as alegrias,para o coração; mas a felicidade é só para a consciência". Os bens materiais nos trazem prazeres; os imateriais, alegrias; mas apenas a consciência do dever cumprido, da missão realizada, do sentido da própria existência é capaz de proporcionar esse sentimento de plenitude.

A felicidade, na visão aristotélica, está, pois, ligada à excelência moral, à vivência das virtudes, especialmente a justiça. É feliz aquele que decide acertadamente em cada momento (pela prudência) qual o dever a cumprir, dando ao outro o seu direito (pela justiça), sem se deixar arrastar pelas tentações do medo (com a fortaleza) ou do desejo (com a temperança). Assim, a felicidade não é um conceito egoísta, mas altruísta.

Mais ainda. Em livro que publiquei recentemente (Ética e ficção: de Aristóteles a Tolkien, Ed. Elsevier), dedico um capítulo ao princípio da felicidade condicional, no qual procuro mostrar que o segredo da felicidade, como nos lembra Chesterton, não está em ter todas as condições ideais para se viver, mas em aceitar as limitações próprias e alheias. Toda a felicidade reside num "se". Ou seja, a absolutização da felicidade, como um direito a que todos se curvem, é justamente a sua morte e a inviabilidade do convívio social. Se, como propunha arrojadamente Aristóteles em sua Política, o objetivo do Estado é fazer dos cidadãos amigos, a felicidade não deve ser reivindicada como um direito, mas almejada como o coroamento do bom convívio entre os cidadãos.

Concretamente, a proposta apresentada na Comissão de Direitos Humanos do Senado é positiva, só pecando por falar, na ementa, em "direito à felicidade", quando, em seu texto, deixa claro que os direitos são os sociais elencados, cuja garantia terá como resultado propiciar a busca pessoal da felicidade: "Art. 6º. São direitos sociais, essenciais à busca da felicidade, a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição".

Em suma, o que se pode falar, com propriedade, é no direito ao bem-estar social, como condição para a consecução da felicidade pessoal, já que a felicidade, a rigor, só é atingida indiretamente: somos felizes promovendo a felicidade dos outros, pela harmonia na família, no trabalho, nas relações sociais. Como bem lembrou o músico Tonho Matéria, em depoimento na comissão, "felicidade é respeitar a vida e o meio ambiente". Enfim, viver de bem com a vida, consigo mesmo, com Deus e com os demais. E tal ideal merece ser lembrado em nossa Constituição.

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