quinta-feira, 1 de junho de 2006

A leitura como experiência tátil




A LEITURA COMO EXPERIÊNCIA TÁTIL, MANUAL, AXILAR
Autor: Berilo Vargas
Fonte: O Globo, Rio de Janeiro, Caderno Prosa e Verso, 27 de maio de 2006.

Deu na revista de domingo do "New York Times" - O livro, como objeto, começou a perder o que se poderia chamar de sua corporalidade - e seu lugar na prateleira dos utensílios do espírito. Fóssil de estágios pretéritos da nossa civilização, estaria condenado pela marcha da História a dissolver-se nas telas de uma gigantesca e abstrata biblioteca universal, já em frenético processo de construção por mecanismos de busca como Google, Yahoo, Microsoft e outras entidades fantasmagóricas que tecem e controlam a www -.
Pode ser que a época do livro esteja, de fato, chegando ao fim. Se é assim, para onde irá o hábito da leitura? Como criar vínculos sentimentais com textos cuja materialidade se resume a sombras pontilhadas numa tela fria? Já tentaram ler o "Dom Casmurro" online, por gosto e não por dever de ofício? Impossível deixar-se levar por muito tempo no mundo sem fronteiras da Internet pelo passo miúdo da prosa machadiana.
Tempos atrás um livro debaixo do braço era parte da bagagem do universitário. Professores repetiam uma frase de efeito disfarçada de conselho: "Não se absorve a sabedoria pelo sovaco". Enganavam-se. Impossível apaixonar-se por um autor, qualquer autor, ou por um livro, qualquer livro, sem carregá-lo debaixo do braço. Lemos com os olhos, com a mente - e com as axilas. E faz sentido: não são os livros nossas muletas mentais?
Veja-se o caso de "Os Sertões". Dava quase tanto prazer carregar de um lado para outro a volumosa obra-prima de Euclides, devidamente fechada, deixá-la na mesa ao alcance da mão, pegá-la de volta para abri-Ia e fechá-la sem motivo aparente, pronunciar em silêncio o nome sagrado do autor e o título consagrado do livro, quanto sentar-se para ler mais uma vez que o sertanejo não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral, e descobrir outras novidades. O amor à literatura não terá por base a leitura como experiência tátil, manual, axilar?
O texto literário online tem o grave defeito de ser arredio ao tato e aos outros sentidos. Não se pode pegá-lo, segurá-lo, apalpar-lhe a pessoa física, aspirar-lhe o cheiro de papel velho ou de papel novo que, em muitos casos, dá uma dimensão inesperada ao conteúdo, e fica para sempre associado a uma história, a uma emoção que nos vem subitamente, ao dobrarmos a esquina de uma página, com a surpresa de um ritmo, de uma palavra, de uma imagem coruscante.
A busca do prazer estético requer do leitor base sólida, na cabeça e nas mãos. Escrever bem, e ler na mesma altura, é atividade sofregamente artesanal, como abotoar uma blusa ou desembrulhar um 'bombom. Como baixar Proust das prateleiras do ciberespaço e torná-lo apetecível a quem nunca leu um parágrafo seu? Quem teria testa para encarar os sete volumes de "Em busca do tempo perdido" na frigidez mineral de uma tela? Como quebrar a arrogância do "Ulisses" joyciano sem erguer o peso de suas mil páginas? Será a conversão do livro em entidade virtual o fim da leitura por esporte?
No futuro, ninguém sabe. Mas por ora é negócio desligar nossas bibliotecas virtuais e sair de casa com um livrinho, digamos, do Mário Quintana, para tirá-lo do bolso no metrô e ler numa página aberta ao acaso, só com a energia dos dedos, que "todos esses que aí estão, atravancando meu caminho, eles passarão, eu passarinho!"

0 Comentários:

Arquivo

Categorias