A Alexandria portátil
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http://www.revistapronto.com.br/Noticia.asp?ID=150Vem de longe o sonho humano de ter todo o conhecimento futuro e passado num só lugar. Os livros sempre foram as moradias deste desejo, espalhadas, distantes, por vezes em agrupamentos. Já se tentou reunir todos os livros, documentos e conceitos num só local, a Biblioteca de Alexandria, 300 A.C., depois pira de estimados 30 a 70% do escrito até então, originais de filósofos gregos tornados fumaça. Mas o imaginado por Borges já tem respaldo tecnológico, questão de braços agora! É o fim de dois paradigmas, o papel e o espaço. Digitalizar livros não é recente. Os próprios manuais dos programas de computação já eram escritos e entregues em disquetes, como ebooks e os escaners sempre foram periféricos baratos e em paralela evolução aos PCs. O impulso à transformação digital deriva da concorrência dos mecanismos de busca, especialmente o Google, versão yuppie de Deus: onipotente, onisciente e onipresente. Acesso aos livros, especialmente os antigos, passou a ser diferencial na concorrência entre buscadores. É entre traças e aforismos que Microsoft, Yahoo! e Cadê guerreiam. Alguns números ajudam.Desde a Suméria de 3100 A.C. , publicamos ao menos 32 milhões de livros, 750 milhões de artigos e ensaios (somem este) , 25 milhões de canções , 500 milhões de imagens e 100 bilhões de páginas de Internet (duas décadas, as cem) . Os 50 petabytes hoje ocupariam o espaço de uma cidade. À curva das atuais taxas de compressão e armazenamento não levarão uma dezena de anos e carregaremos nossa Alexandria num iPod.Em 2003, a livraria Amazon inaugura o serviço A9, com o qual o freguês percorre algumas páginas dos livros relacionados ao assunto que procura. Já era uma revolução, alguém, no caso um programa, vasculhava por mim uma livraria inteira, coisa de dez segundos. Se eu precisasse de citações, trechos curtos ou referências bibliográficas a livraria abstinha-se de cobrar. Uma revolução! A Google Inc. não tardou a responder. Na Feira de Livros de Frankfurt, em 06 de outubro de 2004, sob testemunho de Paulo Coelho e Dan Brown, anunciou o projeto, que já iniciara, de digitalizar as sete maiores bibliotecas dos Estados Unidos, que inclui as bibliotecas de Harvard, Stanford, Michigan e Oxford. Só Harvard guarda 15 milhões de volumes. A dupla dona books.google.com foi clara no objetivo da empreitada, que custará anos e dólares inestimáveis: "abrir (unlock) a riqueza de informações que está offline e trazê-la online". Algumas das universidades impuseram restrições, como não disponibilizar conteúdos integrais de livros recentes. Não há mais recuo, a indústria livreira sofreu a mesma punhalada que a fonográfica, e bambeia pelos mesmos corredores virtuais, os trocadores de arquivos P2P, ponto a ponto, que as irmãs audíveis. Se procuro por Da Vinci Code na rede E-Donkey, tenho mais de uma centena de opções grátis a desembolsar R$31,00 pela obra. Itens caros, como As Obras Completas de Freud e Enciclopédia Brittannica, igualmente oferecidos à troca.Todas as músicas gravadas já digitalizadas, daí a dianteira no fornecimento de serviços, pagos ou não. Só em Stanford, que possui oito milhões de livros, a Google utiliza um robô da suíça 4digitalbooks capaz de escanear mil páginas por hora. Ao humano cabe apenas abastecer a máquina com os volumes. E tem política aí gente: na China, todas as bibliotecas estão em igual processo, com uma ressalva: só os livros em chinês ganharão versão eletrônica. Uma vez em circulação, os novos ricos do Vale do Silício e os pobres da conectada Índia têm em mãos a mesma biblioteca. Num segundo tempo, os termos estabelecerão imediata conexão, uma palavra levando e outra, culturalmente transformadas, num infinito. No "Admirável Mundo Novo" dos livros, cada bit leva a outro, cada página a outras tantas, coisa quem em 1984, o ano, nem a casa das quimeras projetava. Uma exceção, talvez: Nicholas Negroponte, do MIT, idealizador do projeto OLPC- "One Laptop Per Child", um computador de U$$100 a ser distribuído a todos os alunos das escolas públicas de países pobres. No Brasil, embora em ajustes de custos, parte da produção já começou. A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro da USP e o Projeto Gutenberg já contam com milhares de livros grátis, notadamente clássicos e pertencentes ao currículo do ensino médio. Cópias baratas e leis de pantanosas de domínio público (autorização para copiar) tiveram efeito perverso. Há coleções inteiras abandonadas pelos publishers e com reprodução controlada, um continente de livros legados às trevas. O caso mais comum é a inviabilidade econômica em reimprimir e manter edições. Noutra ponta, fúnebre, as editoras desconhecem os reais destinatários dos direitos cujos autores morreram. É algo assustador: 75% dos livros guardados em bibliotecas são órfãos. Apenas 15% deles são de domínio público e 10% são reeditados. Enfim, a maior parte deles jaz em cavernas.E como ficam os direitos autorais. Descontados autores vivos, bestsellers e coleções direcionadas, mesmo a lei americana, é porosa. Poucos editores possuem lista segura de pertencimento intelectual das obras que imprimem e forçados pela Google e pelo A Million Book Project, cujo nome explica a cumprida missão, seguem as mesmas toadas. Sabem que ao final a cópia vencerá. Mesmo a Biblioteca do Congresso Americano tem pouca rastreabilidade acerca dos recipientes de direitos das obras que hospeda. É questão de tempo, como tem sido com a música.Kevin Kelly, um dos fundadores da Wired,
www.kk.org e autor de "Out of Control: The New Biology of Machines, Social Systems and the Economic World" (Fora de Controle: A Nova Biologia das Máquinas, Sistemas Sociais e Economia Mundial) prevê novo modelo de recebimento de pelos autores passará necessariamente pelo Google ou assemelhados será a troca de links ou de serviços publicitários, fato que provocou o retorno às catacumbas. Com a digitalização frenética dos dois terços abandonos, editores buscam maneiras de receber algo pelos ressuscitados. E a encrenca ainda é maior, Google com cabeças de vantagem, claro. Não só.Dos vivos e novos, as leis atuais são inócuas. Não há, como foi com o vinil, como controlarmos as cópias, que crescem exponencialmente. A riqueza migrou do arquivo em si, seja livro, música ou filme, software para os serviços agregados que o produtor deste fornecerá online. A interatividade, a personalização, o pós venda agora concentram valor e nestes devem mirar os produtores de conteúdo. A tecnologia empurra a lei e a oferta a outros regimes.A biblioteca do mundo já é fato e o cessar fogo entre as buscadores e produtores é inevitável, uma vez que já se conhece o resultado. Nós, os leitores.