segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Fantasmas e paranoias na BN




Fonte: http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/

De todas as 200 obras apresentadas ao público pela Biblioteca Nacional na exposição em que comemora seu bicentenário, a Bíblia de Mogúncia é a única que não dorme no salão junto com as outras. Tão logo o último visitante vai embora, a funcionária da divisão de obras raras pergunta à chefe:

— Posso ir buscar a Bíblia?

A pergunta pode parecer retórica, mas a verdade é que existe um imenso aparato de segurança que precisa ser acionado a cada transporte desta que é a obra mais valiosa da instituição. Dois seguranças acompanhados de um funcionário da seção são responsáveis pelo traslado. Outros dois fazem a guarda nas portas do elevador parado exclusivamente para o momento.

Todos parecem respirar aliviados quando a relíquia chega ao local onde permanecerá trancafiada até nova aparição pública. Trata-se de um cofre secreto ao qual ninguém, exceto o responsável, tem acesso. Não se pode chegar perto sequer do longo corredor onde é escondido para evitar as pistas sobre seu paradeiro.

Bíblia de Mogúncia aos cuidados da “louca do cofre”

Na manhã de um dia incerto — a Bíblia só é exibida uma vez por semana em data que não é revelada antecipadamente —, no primeiro horário, a funcionária a cargo do transporte liga para saber quem irá recuperá-la logo mais. Só depois de receber a informação, abre o cofre. Esta é uma das várias personagens apaixonadas pelo trabalho na biblioteca que ficaram conhecidas entre os colegas. O cuidado inspirou o apelido carinhoso de “a louca do cofre”.

— A reação dela é justificada. É preciso entender o que está por trás da peça impressa em pergaminho. É uma obra de arte — afirma a bibliotecária-chefe da Divisão de Obras Raras, Ana Virgínia.

A paranoia da segurança está no ar. Na BN, não se pode fazer nada sozinho. Estagiários passam por cautelosa triagem e escrutínio dos chefes. As restrições e revistas em bolsas e sacolas quase incomodam, não fosse o objetivo nobre.

— Quando a gente chega aqui para trabalhar, não entende bem o aparato. Mas a preocupação vem rapidamente com o deslumbramento — afirma um dos funcionários.

Na entrada da sala do presidente, fala-se em fantasmas. Apenas mais uma lenda urbana? Coincidentemente, uma das secretárias do andar havia acabado de acender um incenso justamente por se sentir incomodada com o que poderia ser a presença de um deles.

— Trabalho aqui há 28 anos e nunca vi. Mas há pelo menos uns cinco funcionários que garantem que os fantasmas estão aí. Um deles quase quebrou duas portas, tamanho o pânico. Disse ter ouvido e sentido uma corrente passar por suas costas — conta um funcionário antigo da área de manutenção, instalada no subsolo do prédio, quatro andares abaixo da presidência.

Neste longo corredor subterrâneo, abaixo do nível da Avenida Rio Branco, também está uma das visões mais inusitadas da biblioteca, como revela a bibliotecária Mônica Carneiro. Descobriu, por acaso, que a confusão administrativa fica no único pedaço do prédio de onde se vêem as primeiras estruturas originais da BN em sua forma bruta. Por trás das belas paredes bem feitas e dos degraus polidos da escadaria elegante estão tijolos antigos aparentes e as grandes lajotas inteiras de pedra. Mônica já voltou a este lugar várias vezes e recentemente apresentou-o a uma colega.

Tantos anos passados dentro da instituição lembram os funcionários, significam também contato com muitos personagens malucos. Já houve quem entrasse nos armazéns, onde ficam dispostos os livros, pusesse uma meia dúzia deles debaixo do braço e partisse.

— Aconteceu mais de uma vez. Dizem que as obras pertenceram às suas famílias. Um deles chegou a me apontar um facão — conta um funcionário.

Entre os usuários frequentes, bibliotecários já identificaram figuras que rondam o acervo da biblioteca na esperança de fazer fortuna abastecendo colecionadores inescrupulosos. Certa vez Mônica Carneiro reconheceu, na sala de leitura, um antigo frequentador que, pouco tempo antes, fora citado nas páginas policiais dos jornais pela acusação de roubo de bibliotecas. Quando ela o viu, não teve dúvidas:

— Chamei a polícia na hora. Não podia expulsá-lo ou impedi-lo de entrar em um local público. Mas, embora ele próprio tenha me dito que não roubava mais obras de arte, foi mantido sob constante vigilância.

Os guardas também já conhecem o público. Assim como os bibliotecários, sabem quem são os habitués:

— Se quiser tentar falar com aquele ali, você ganha um prêmio. Ele não fala com ninguém — comenta um deles, ao se referir a um senhor na sala de leituras, absorto entre livros.

Obras repetidas trocadas por um valioso Dürer

Na divisão de Música e Arquivo Sonoro, guardada no belo Palácio Capanema, fora do prédio da Avenida Rio Branco, as regras também são duríssimas. Não se pode tirar fotos do cofre, onde são mantidas as partituras originais das óperas de Carlos Gomes, alvo do interesse de pesquisadores que querem conhecer melhor o primeiro músico não europeu a se apresentar no Teatro alla Scala de Milão. E mesmo quando tiradas com autorização prévia, como no edifício principal, as fotos não podem permitir a localização dos longos armários. Desconfiada, Elizete Higino, a chefe da divisão, pede para conferir o material feito pelo GLOBO para saber se está conforme o combinado.

O pessoal da BN também gosta de lembrar as histórias do passado. Marrocos, o primeiro bibliotecário da instituição, veio junto com as bagagens de D. João VI. Era conhecido como o maior fofoqueiro da sua época. Consta que, por ter se envolvido com algumas moças na Bahia, teria ajudado a formar à época um belo acervo naquele estado com as obras duplicadas da coleção da BN. Há ainda curadores considerados queridos até hoje por terem “trocado figurinhas” com nobres colecionadores como Barboza de Oliveira, que recebeu obras repetidas e forneceu à biblioteca relíquias como um valioso Albrecht Dürer.

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