Autora: Maria Ignez Barbosa.
URL: www.mariaignezbarbosa.com
Fonte: O Estado de S. Paulo. Data: 26/7/2009.
Receita para a alma. Esta é a frase que se lê na inscrição que bravamente resiste ao tempo, na entrada da biblioteca do Templo de Trajano, em Roma. Não seria portanto sem sentido dizer que uma casa sem livros é uma casa sem alma. E, mais do que qualquer outro ambiente na casa, será a biblioteca - ou o lugar escolhido para os livros - o que melhor vai expressar a personalidade de seus ocupantes. Estarão ali revelados seus gostos, interesses, preferências, hábitos e paixões. Não importa que estejamos na era digital, que hoje o livro possa ser escutado e que a informação nos chegue pela internet. O fato é que o livro, ou o chamado codex (era assim que se dizia no mundo antigo), que nasceu há 2 mil anos, ou mesmo antes de Cristo, sob a forma de folhas de pergaminho recortadas, escritas por um escriba e costuradas a mão, e que, em 1450, na Alemanha, quando Gutenberg inventou a impressora, passou a ser produzido de forma menos artesanal, não vai sair tão cedo de nossas casas e muito menos de nossas vidas.
E como declarou a escritora Frances FitzGerald, "o livro a gente leva para a cama, mas o CD não".O hábito da leitura silenciosa teria se popularizado no tempo dos romanos. E, de coisa elitista no século 18 - nenhum gentleman que se prezasse dispensava uma biblioteca em casa com livros belamente encadernados - a artefato cultural com variados significados democratizado no século 19 e beneficiado pelos avanços tecnológicos nos 100 anos seguintes, o livro continua entre nós, presente como nunca, sendo editado aos borbotões, acessível como jamais foi e seduzindo cada vez mais gente.
É sem dúvida um dos mais fiéis companheiros do homem. Quantos de nós não o temos como aliado em noites de insônia, em longas viagens de avião, na simples solidão? Mais do que ler e aprender, ele pode nos ligar com o passado, nos fazer viajar por outros mundos, escapar para novos universos, acender luzes internas. Um bom livro pode nos seguir pela casa, até a cozinha, no banheiro, à mesa de jantar.
Há quem diga que os livros nos escolhem. Nicolas Barker, filho de um professor universitário na Inglaterra e que em pequeno gostava de brincar na Cambridge University Press, conta que, sempre que lhe perguntam se coleciona livros, responde: "Não, os livros é que me colecionam". E mesmo que possa não ser a forma mais agradável de leitura, quem não vai adorar ser dono de uma primeira edição de um livro famoso ou predileto?
A paixão pelo livro tem história. Churchill, quando não tinha tempo para ler, se consolava passando neles a mão, sentindo-os na pele. O escritor A.L. Rowe dizia que a biblioteca de Churchill era "eloquente do homem", seu retrato perfeito, e que é possível "lermos" as pessoas através dos livros que elas leem. Para muita gente, apenas o fato de possuir livros pode transcender o prazer de lê-los. Cheirá-los pode emocionar. E a arte de certas lombadas e encadernações pode encantar o olhar e o ego de seu dono. O filósofo Walter Benjamin acreditava que os livros têm um sentido simbólico que não depende necessariamente de sua utilidade, apesar de que sua utilidade é o que os torna realmente especiais. Num momento de mudança para uma nova casa, quando desembalava a biblioteca, teria comentado: "Há uma tensão dialética entre a ordem e a desordem".
LIVROS BRANCOS
Arrumar os livros numa estante pode ser de fato um drama na vida dos bibliófilos. Se por assunto, se por ordem alfabética, tamanho, cor, encadernação. É tarefa interessante e delicada para muito decorador. David Hicks dizia gostar de projetos que nunca terminam e que uma biblioteca é justamente isso. Está sempre em mutação.
Nos anos 30, a decoradora americana Frances Elkins, para um look de efeito, gostava de encher as bibliotecas com livros brancos. Encapava os volumes de seus clientes com pergaminho, mas deixando, obviamente, uma abertura para os títulos. Descubro que Keith Richards, dos Rolling Stones, é um apaixonado por leitura: "Depois de uma vida com o pé na estrada, a leitura hoje é o que me ancora".
Há também quem declare, como o financista americano Victor Niederhoffer, que seria capaz de passar a vida inteira sem se chatear dentro da biblioteca da própria casa. E é conhecida a história do casal Clinton, que, quando foi morar na Casa Branca, logo notou que havia ali poucas estantes e comentou que, se o problema não fosse remediado, jamais se sentiria em casa na nova morada.
Segundo os aficionados, um dos prazeres do colecionador é encontrar um determinado livro na estante de um sebo ou livraria e "libertá-lo" para uma nova vida e utilidade - ou seja trazê-lo para a sua própria estante. Viver para e entre livros pode ser um prazer. Em Washington, lembro de um enorme galpão dedicado aos bibliófilos, onde era possível encontrar desde capas para proteção da dust jacket em todos os tamanhos possíveis, o sabão correto para a limpeza, esparadrapos especiais, removedores de manchas, antissépticos, cordas, folhas, material para encadernação e o que se puder sonhar para melhor preservar nossos livros. Talvez pouca gente saiba que o fato de muitas editoras francesas, como a Gallimard, por exemplo, ainda publicarem seus livros com o velho modelo de capa branca, onde apenas o título varia, é porque não abandonaram a tradição de tê-las simples, uma vez que antigamente a maioria dos livros com capa mole seria depois encadernada por quem quisesse preservá-los.
A forma como é tratado, disposto ou manuseado, daria ao livro qualidade humana. Ao acumulá-los, o colecionador compulsivo ou leitor apaixonado acabará, mesmo que sem querer, criando com eles bookscapes, ou seja, pequenas ou grandes paisagens em qualquer canto da casa. Poderão surgir empilhados sobre cadeiras ou bancos, em mesinhas perto da poltrona de leitura, ou da cama, aguardando a vez de serem lidos; no interior de lareiras ou sobre suas bancadas, subindo os degraus das escadas junto à parede, em estantes dividindo ambientes, dentro de cestos, no lavabo e na cozinha. Mesmo que bagunçados ou empoeirados, mal não há de nos causar à vista. Serão sempre uma edificante e prazerosa companhia.
sexta-feira, 7 de agosto de 2009
O que dá alma ao ser humano
sexta-feira, agosto 07, 2009
Publicado por Murilo Cunha
Assunto: bibliofilia, biblioteca privada, livro
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
3 Comentários:
Paulo leitura é tudo de bom, ela nos apresenta a um mundo novo. Cada livro nos leva a um mundo diferente... gosto muito de comprar livros e sobretudo emprestá-los aos amigos. Não gosto de ver livros na estante!!!!!
bjos
Eu por acaso até gosto de os ver na estante, de a percorrer com os olhos procurando uma "presa"...
Paulo obrigada pela visita!
Abraço!
Enviar um comentário