quinta-feira, 14 de maio de 2009

Brasil: bibliotecas públicas para todos?




Biblioteca para todos?
Fonte: CulturaeMercado. Data: 8/5/2009.
URL: http://www.culturaemercado.com.br/post/biblioteca-para-todos/comment-page-1/
MinC anunciou semana passada que o Brasil irá zerar o número de municípios brasileiro sem bibliotecas. Entrevistei o antropólogo Felipe Lindoso, especialista no assunto: “deve-se reconhecer, e dizer claramente, que o governo do Presidente Lula foi o que mais instalou bibliotecas públicas na história do país. Isso é altamente positivo e louvável, sem dúvida nenhuma. Só que o programa, como vimos, não apenas é medíocre na formatação e na sua execução, como também tem um caráter centralizador e autoritário”.
Leonardo Brant - O que representa para o país zerar os municípios sem biblioteca?
Felipe Lindoso - Do ponto de vista simbólico, é muito importante. Revela, sem dúvida, um esforço para eliminar algo que eu coloco como uma das vergonhas nacionais, isso de existir algum município que não tenha nem mesmo uma mísera biblioteca como equipamento cultural.
Mas, no caso, é importante considerar algumas outras coisas. Em primeiro lugar, o número de municípios “sem bibliotecas” é algo discutível. Não existe um sistema de informação dentro da Biblioteca Nacional ou do Ministério da Cultura que informe efetivamente sobre isso.
Em segundo lugar, o chamado Sistema Nacional de Bibliotecas é uma ficção, com algumas bibliotecárias lotadas no Rio de Janeiro, na Biblioteca Nacional, sem meios nem condições de efetivamente administrar um sistema. Deficiência que se repete nos estados, com as proverbiais honrosas exceções. As bibliotecas estaduais, que seriam as “cabeças” do sistema em cada unidade federativa, também não estão aparelhadas para saber o que acontece nos municípios. Até porque esse sistema não existe.
Em terceiro lugar, o levantamento dos municípios “sem bibliotecas” foi feito a partir dos dados do IBGE que constatavam a existência ou não – do ponto de vista formal – de biblioteca em cada município. Não existe nenhuma maneira do MinC saber quais bibliotecas efetivamente funcionam, e se estão pelo menos abertas ao público. Ou seja, existe um número indeterminado de municípios que, de fato, não possuem uma biblioteca aberta ao público e isso não está equacionado. Existem prefeitos que simplesmente não se importam com a questão da biblioteca pública, e entre os quase seis mil municípios provavelmente existem prefeitos que detestam a ideia de por livros ao alcance da população.
Por isso mesmo, anunciar que no dia 25 de junho o MinC vai “zerar” o número de municípios sem biblioteca é algo temerário. O Presidente Lula pode ser induzido a participar de uma cerimônia furada.
LB - O processo de implementação dessas novas bibliotecas atende às necessidades e interesses de cada região?
FL - Não. O processo foi totalmente centralizado na Biblioteca Nacional. A ideia original era que pelo menos 10% do acervo fosse “regionalizado” e nem isso foi feito. Os acervos foram totalmente definidos no Rio de Janeiro, por comissões de especialistas – competentes e com as melhores intenções, mas cheios da autossuficiência de quem sabe o que é “bom” para formar o “leitor crítico” que existe na cabeça deles. A ideia de que a biblioteca é um serviço público, que deve atender às necessidades dos leitores e, ao mesmo tempo, proporcionar os meios para ampliação do seu universo cultural, é um conceito estranho para os leiturólogos, como eu chamo. Na cabeça deles, livro bom é o que eles consideram assim, sem atentar para a diversidade de interesses, necessidades espirituais, emocionais e de conhecimento que possam ter os cidadãos espalhados por esse imenso país.
Ninguém se toca do ridículo que é mandar o mesmo acervo para Urucurituba, no Amazonas, Zédoca, no Maranhão, Ceres em Goiás, ou para os municípios do Pontal do Paranapanema ou do Vale do Ribeira em S. Paulo, ou da fronteira com o Uruguai no Rio Grande do Sul, etc.
LB - Quais os principais problemas das bibliotecas hoje no país?
FL - A lista é enorme, mas posso sintetizar no seguinte grupo de questões:
1) A quantidade de bibliotecas. Não se pode ter a ilusão de que “uma biblioteca por município” seja uma resposta adequada. É importante, como já disse, resolver esse problema básico. Mas o planejamento de uma cobertura adequada de bibliotecas pelo território nacional está longe de ser sequer pensado, muito menos colocado no papel e com meios de ser executado.
A quantidade de bibliotecas é uma razão entre o número de habitantes de uma determinada área, o tipo de cobertura dado pelas bibliotecas escolares – que aqui no Brasil, como essa esquizofrenia de separar educação da cultura, inclusive administrativamente, não é sequer computado quando se fala em bibliotecas públicas; a densidade populacional – que pode exigir unidades móveis ou postos avançados em regiões menos povoadas, mas nem por isso menos carentes – e a estruturação de tipos de bibliotecas públicas, com mais acervos e equipamentos que possam subsidiar as menores com a circulação de exemplares, programas de capacitação do pessoal e de formação de leitores. Só a partir dessas considerações, que nascem da análise da situação de cada município, seria possível definir a quantidade e o formato das bibliotecas necessárias.
2) A questão dos acervos. Que pode ser dividida em duas partes.
Primeira: a quantidade. O documento “The Public Library Services – IFLA UNESCO Guidelines for development”, que é o documento básico para a constituição de uma política pública para bibliotecas, publicado pela IFLA – International Federation of Librarians Association/UNESCO (Federação Internacional de Associações de Bibliotecários/UNESCO), de 1997, declara que “como regra geral uma coleção de livros deve ter entre 1,5 a 2,5 livros per capita. O estoque mínimo para o menor ponto de serviço não deve ser menor que 2.500 livros”. Ou seja, o acervo adquirido pela Biblioteca Nacional para o programa dos municípios (2.000 títulos) está abaixo até mesmo desse mínimo. A conta é simples: o conjunto das bibliotecas públicas brasileiras deveria ter, pelo menos, entre DUZENTOS E OITENTA E SEIS MILHÕES e QUATROCENTOS E SETENTA E SETE MILHÕES de exemplares. Na verdade deveria ser mais, considerando a densidade populacional de alguns municípios.
Ninguém sabe qual o acervo existente nas bibliotecas brasileiras. Mas pode ser afirmado, com toda certeza, que: a) está MUITO abaixo desse mínimo e; b) o estado das coleções, em termos de sua atualização, é péssimo.Qualquer programa que não pense pelo menos nesses termos é simplesmente medíocre. Parte, sim daquele “complexo de vira-latas” do qual falava Nelson Rodrigues e que, felizmente, está sendo superado em outras áreas. Mas não no que diz respeito às bibliotecas públicas.
Segunda: a qualidade. Apelo, mais uma vez, para o documento IFLA/UNESCO: “As bibliotecas públicas são serviços localmente baseados para o benefício da comunidade local e devem proporcionar informações para essa comunidade. Os serviços e coleções que proporcionam devem estar baseados nas necessidades locais, que devem ser avaliadas regularmente. Sem essa disciplina a biblioteca pública perderá o contato com aqueles aos quais deve servir e, como resultado, não serão usados em toda sua potencialidade”. Dessa diretiva decorre necessariamente que os acervos adquiridos por um poder central, sem considerar as necessidades locais e reais dos usuários, é simplesmente fruto de uma postura autoritária e elitista, na pior das hipóteses, ou simplesmente preguiçosa e imediatista.No caso brasileiro, para mim, é a combinação dos dois casos. Autoritária e imediatista porque acha que uma congregação de “sábios especialistas” pode dar conta da grande diversidade local. Aliás, os sábios especialistas na verdade não estão preocupados em atender a essas necessidades locais. Simplesmente partem de sua concepção do que sejam livros “bons”, “de qualidade” para definir o que vão comprar. E os leitores que se deem por felizes de ser o objeto dessa preocupação dos sábios e leiam o que os sábios querem, e não o que eventualmente eles mesmos queiram ler.
3) Sistemas de bibliotecas, cooperação e compartilhamento de recursos. Mais uma vez deve-se observar o que diz o documento da IFLA/UNESCO:
“Cada coleção de uma biblioteca é, em alguma medida, única. Nenhuma coleção pode conter todos os materiais que os membros de seu público requerem. As bibliotecas, portanto, podem aumentar significativamente seus serviços aos usuários proporcionando-lhes acesso às coleções de outras bibliotecas. As bibliotecas podem participar de esquemas de compartilhamento de recursos em qualquer nível, local, regional, nacional e internacional, que envolvam bibliotecas de um amplo raio de organização com recursos de informação. A biblioteca deve também deixar sua coleção disponível para empréstimo para outras bibliotecas através da participação em uma rede, por exemplo, com catálogo unificado ou numa rede local de provedores de informação, tais como as escolas, faculdades e universidades”.
Para os formuladores do documento IFLA/UNESCO, a organização de redes de bibliotecas é um componente da maior importância na formulação e execução de uma política de bibliotecas públicas. Os sistemas de informática, certamente, tornam essa tarefa muito mais fácil.
No programa de bibliotecas, a BN fornece um programa de informática, o Biblivre. O programa acompanha o kit enviado para cada uma das novas bibliotecas. No site do Biblivre estão listadas 705 bibliotecas – nem todas públicas, há desde escritórios de advocacia a colégios particulares e pessoas físicas – que instalaram (ou estão instalando) o programa. Obviamente nem todas as bibliotecas que receberam o Biblivre o instalaram. E das que instalaram, várias não o usam. Conheço vários casos, pessoalmente e por contatos com os responsáveis, de bibliotecas que se recusam a instalar o programa, por considerarem-no ineficaz.
E o melhor exemplo disso, certamente, é a própria Biblioteca Nacional, que não usa o programa. O MinC informa que entre 2004 e 2007 instalou 830 novas bibliotecas no programa “Livro Aberto”, que é o nome oficial do programa que irá “zerar” os municípios sem bibliotecas públicas. E que até este ano – já anunciaram a data, 25 de junho – terão sido entregues 1.173 kits desse programa.
Vale uma anedota. Em 2008 estive em Sergipe para estudar a possibilidade de um programa de bibliotecas públicas em todos o estado. Uma das cidades visitadas, Barra dos Coqueiros, fica em frente a Aracaju e tinha recebido um dos kits da BN. A encarregada, feliz da vida com os livros, as estantes, a TV de 29” e o computador. Mas… Ela não conseguia instalar o Biblivre, então em sua primeira versão. Mandou uma correspondência para a BN pedindo instruções. Resposta: que a prefeitura contratasse uma empresa de informática para instalar e configurar o programa.
É software livre da BN! Livre e gratuito, desde que a prefeitura contrate uma empresa de informática para fazer a instalação.
Já está na segunda versão, e pelo descritivo parece – em tese - ter melhorado muito. Só que, curiosamente, entrando nos poucos sites de bibliotecas listadas como usando o Biblivre, foi impossível fazer qualquer tipo de consulta de acervo. Aliás, o único acervo que consegui consultar foi o da Biblioteca da Universidade Católica de Goiás, listada como uma das que usa o Biblivre. Só que o software que dava acesso ao catálogo era o sistema archerLib, de uma empresa privada.
Em resumo, o programa não funciona a contento. Ou, melhor dito, é uma espécie de “faça-o-que-digo-mas-não-faça-o-que-faço”. Por um lado, pode funcionar muito bem para uma biblioteca isolada. Inclusive, pela descrição que existe no site, pode fazer consultas pelo protocolo Z39.5. Esse protocolo internacional permite consultas ao banco de dado de outras bibliotecas que abram o acesso, e assim compartilhar dados bibliográficos. As grandes bibliotecas do mundo abrem esse acesso, como é o caso da Library of Congress, dos EUA, a Bibliothèque Nationale da França, dezenas de importantes bibliotecas universitárias e bibliotecas nacionais de vários países. O protocolo Z39.5 é, assim, um inestimável instrumento de catalogação, pois permite importar os registros catalográficos já feitos por bibliotecários renomados, segundo as melhores técnicas. Ao bibliotecário local cabe, eventualmente, traduzir para o português e “pendurar” o seu exemplar, como diz o jargão, em seu próprio acervo.
Pois bem, a Biblioteca Nacional não disponibiliza acesso ao protocolo Z.39.5. E nenhuma das grandes bibliotecas universitárias brasileiras. O sistema da USP só permite o uso do Z39.5 dentro do seu próprio sistema. O único acesso de registros bibliográficos é o dado pelo Sistema Brasileiro de Registros Bibliográficos On-Line, um projeto privado do qual faço parte, juntamente com o Alexandria On-Line, um programa de gerenciamento de sistemas de biblioteca, e que permite o acesso gratuito ao banco de dados de livros catalogados. Ou seja, o bendito programa patrocinado pela BN prevê o uso de instrumentos que ela não permite usar. Como diria aquele personagem do programa cômico do Jô Soares, é “chose de loque!”
O Biblivre, mais do que isso, não permite a formação de sistemas de bibliotecas. Não gerencia o empréstimo interbibliotecas. Não forma um “catálogo cooperativo” que possa ser efetivamente usado pelos usuários. Em uma palavra, o programa MinC/Biblioteca Nacional não satisfaz também a esse requisito do documento IFLA/UNESCO.
LB - Estamos no caminho correto para solucionar esses problemas?
FL - Sim e não. Deve-se reconhecer, e dizer claramente, que o governo do Presidente Lula foi o que mais instalou bibliotecas públicas na história do país. Não se vê um esforço nesse sentido desde a época do antigo Instituto Nacional do Livro. Isso é altamente positivo e louvável, sem dúvida nenhuma.
Só que o programa, como vimos, não apenas é medíocre na formatação e na sua execução, como também tem um caráter centralizador e autoritário. Mas o que é pior, não prevê de fato nenhum sistema de avaliação, acompanhamento, capacitação. O que é feito deve-se à iniciativa de algumas bibliotecárias, algumas dirigentes de bibliotecas públicas estaduais ou sistemas municipais, que possuem uma visão abrangente e dinâmica das bibliotecas públicas e fazem o possível para se virar com o que o MinC proporciona.
O MinC está desaparelhado institucional e tecnicamente para efetivamente montar um Sistema Nacional de Bibliotecas Públicas. A Biblioteca Nacional teima em manter na sua estrutura um pseudo sistema que não funciona, e se restringe a organizar alguns encontros e a repassar os livros que são publicados com projetos de incentivos fiscais, dos quais 10% da tiragem é enviada à BN como contrapartida, e a montar as listas dos sábios para a aquisição.
LB - Há uma relação direta entre a Lei Rouanet e as bibliotecas públicas? O que acontecerá com as bibliotecas com o fim da Lei?
FL - Já escrevi e me manifestei várias vezes que um dos grandes problemas da Lei de Incentivos Fiscais é o foco na produção de bens culturais, muito maior do que o que deveria existir na circulação e acesso desses bens culturais. A lei deveria ser muito mais indutiva para incentivar a circulação e o acesso do que é.
Quanto ao uso da Lei Rouanet para programas de biblioteca, nada melhor que a transcrição de pareceres da Biblioteca Nacional para projeto que apresentei para desenvolvimento de programas de bibliotecas.
Não vou alongar a história. Já tinha sido aprovado anteriormente, através da Associação Cultural Basílio da Gama, da qual sou presidente e que foi constituída para desenvolver esse tipo de programas - um projeto para desenvolvimento de sistemas de bibliotecas, usando um módulo de “banca-biblioteca” para instalar um ramal de biblioteca em local de difícil acesso. Com esse projeto foram instaladas bancas-bibliotecas nos municípios de Suzano, Hortolândia, São Caetano do Sul, São Bernardo e Osasco, em S. Paulo (com patrocínio da Petrobrás) e em Volta Redonda, no Rio de Janeiro (com o patrocínio da White Martins).
Mais que a simples instalação de uma banca-biblioteca, porém, o projeto induzia as prefeituras a começar a desenvolver seu sistema de bibliotecas municipais, com a implantação de um gerenciador de sistemas de bibliotecas, o Alexandria Online. Que, aliás, é o usado pela Prefeitura Municipal de São Paulo para seu sistema de bibliotecas, e permite consultas, via internet, de todo o acervo catalogado.
Como é fartamente sabido por quem lida com projetos culturais, o processo de aprovação no Ministério da Cultura leva meses. Por isso mesmo, as instituições que desenvolvem projetos mais genéricos procuram ter projetos aprovados de antemão para que, quando surge a oportunidade de conseguir um patrocinador, a ação seja viável. Assim sendo, apresentamos um projeto para deixar tudo pronto para que se buscasse patrocinadores e também se definisse o local (município) onde estas poderiam ser instaladas.
Pois bem, o projeto foi protocolado em novembro de 2006, em S. Paulo, na Delegacia do MinC.
Recebeu, inicialmente, um parecer favorável à sua execução e foi enviado à Brasília. Aí começou a via-crúcis. Sabe-se lá por que razão o parecer da técnica de S. Paulo foi desconsiderado e em fevereiro do ano seguinte (três meses depois de protocolado) foi enviado pelo coordenador do Pronac na BN, Sr. Ubaldo Santos Miranda para análise do Sistema Nacional de Bibliotecas Públicas.
A via-crúcis começou a virar samba do crioulo-doido. Parecer assinado pela Sra. Ilce G. M. Cavalcanti, bibliotecária e Coordenadora-Geral do SNBP, do qual transcrevo os trechos relevantes:
“A proposta colocada é interessante, porém vai de encontro as ações desenvolvidas pelo SNBP/FBN (Sistema Nacional de Bibliotecas Públicas/Fundação Biblioteca Nacional).
“O Programa Livro Aberto em uma de suas ações, contempla as Bibliotecas Públicas com a atualização dos acervos. Além do que, o SNBP/FBN realiza distribuição da doação de livros, de forma sistemática.
“Desta forma, verifica-se uma certa duplicidade de trabalho como também, de verba, Sugiro que seja realizada uma consulta ao SNBP?FBN, a fim de adequar e agregar esforços.
“Quanto ao Programa de Gerenciamento citado, informo que existem Programas gratuitos para atender as necessidades das Bibliotecas Públicas, não precisando ser adquirido através de compra.
“Faz-se necessário, a apresentação da relação de livros que vão ser adquiridos e, informar quais os critérios que foram adotados para a seleção.
“Na justificativa, seria interessante apontar a fonte de informação utilizada quando é mencionada a situação atual das Bibliotecas Públicas da região Sudeste”.
(A redação é transcrição do parecer redigido pela ilustríssima senhora bibliotecária. Ipsis literis, inclusive as vírgulas).
O projeto mencionava argumentos que não apenas tinham sido feitos para o anterior, que fora aprovado, como estavam expressos no meu livro O Brasil Pode ser um País de Leitores? Particularmente – e seguindo as recomendações da IFLA/UNESCO – o que explicava os critérios para a constituição do acervo. Dizia o projeto: “A constituição dos acervos das bibliotecas a serem implantadas deverá partir de listas elaboradas pelas bibliotecas municipais, ampliadas e complementadas por pesquisa de acervo disponível e com o apoio de eventuais listas de sugestões elaboradas pela FBN ou instituições similares. Um princípio deve nortear a constituição dos acervos: adequação ao público-alvo da biblioteca e às suas necessidades específicas.”
Ao saber – extra oficialmente – das restrições, aproveitei uma viagem ao Rio de Janeiro para conversar com o Sr. Santos Miranda.
O funcionário me declarou que era preciso saber que municípios receberiam as bibliotecas “para não coincidir com os que estavam recebendo o kit do Livro Aberto”, e que a lista de livros era imprescindível para saber “se eram de qualidade”.
Respondi, com a nonchalance possível, que os municípios eventualmente beneficiados seriam determinados pelo patrocinador, e que não entendia porque, se um prefeito fosse ágil o suficiente para conseguir uma biblioteca da BN e outra de um patrocinador, não entendia porque deveria ser punido, sem poder ter as duas. E informei também que o critério de acervo estava especificado e que, apoiado na Constituição Federal, eu não admitia censura: qualquer livro publicado no Brasil poderia integrar o acervo de uma biblioteca pública. Disse também que, ainda que apoiasse as iniciativas de software livre, observava que o Governo Federal frequentemente fazia licitações para adquirir os programas da Microsoft. Software livre não era dogma, muito menos quando exigia a intervenção de programadores externos para ser instalado.
E dei um exemplar do meu livro para o senhor Santos Miranda.
Para encurtar a história, em abril de 2008, a CNIC aprovou – sem aprovar – o projeto. Cortou do orçamento, discricionariamente, valores para aquisição do programa de gerenciamento, diminuiu o volume destinado a compra de acervos, não admitiu que fosse usado outro programa que não o já mencionado e analisado Biblivre, cortou a remuneração dos executores do projeto e condicionou tudo ao envio prévio da lista dos livros adquiridos “com o parecer de uma comissão de três membros, dos quais pelo menos um bibliotecário”.
Íamos recorrer, mas desistimos. Se a senhora Coordenadora-Geral do SNBP/FBN pede, ela mesmo, que o projeto seja analisado por ela mesma, entramos, como diria Stanislaw Ponte-Preta, no perigoso terreno da galhofa. Se a Fundação Biblioteca Nacional se outorga o direito de exercer a censura prévia de livros que entrarão no acerco de uma biblioteca pública, já estamos numa situação mais complicada: os ecos da ditadura, pelo visto, continuam ressoando no casarão da avenida Rio Branco. E com força.
Se o coordenador do Pronac na Biblioteca Nacional declara que não se justifica implantar mais de uma biblioteca em um município, finalmente temos a resposta para a pergunta: A PARTIR DO DIA 25 DE JUNHO, QUANDO FOR “INAUGURADA” A ÚLTIMA BIBLIOTECA DO PROGRAMA LIVRO ABERTO, NEM ADIANTA APRESENTAR OUTROS PROJETOS DE BIBLIOTECAS. A Fundação Biblioteca Nacional, ciosa e orgulhosa de sua façanha, dirá que são redundantes e, portanto, inúteis e lesivos ao interesse público.
É assim que raciocinam aqueles que “gerenciam” os programas de biblioteca do MinC. O que justifica qualificar esses programas como medíocres e autoritários, ainda que se possa dar todo o desconto das boas intenções que calçam essa particular via para o inferno.

4 Comentários:

Ursula Blattmann on 14 maio, 2009 disse...

Prezado Murilo,
Parabéns por publicar um texto que merece a leitura, amplo debate para que seja criadas biblioteca públicas reais e não mais fantasias. Precisamos de comprometimento e de ações. Felipe Lindoso mostra sua experiência e alerta para essas "escolhas " do acesso e do acervo que deveriamos ter mas nosso direito à informação é negado ou pelo menos conduzido! Ursula Blattmann - Professora na UFSC

K.L.M. on 14 maio, 2009 disse...

Pois é Murilo, de boas intenções - como diria o ditado - o inferno tá cheio. É incrível que novamente toma-se iniciativas apenas por números e não qualidade. Falta embasamento. Lamentável essa notícia, mas necessária para que todos possam abrir os olhos, diante do que vem ocorrendo no nosso país.
Karin L. Menoncin - Aluna de Biblioteconomia - UFRGS

Julio Teixeira on 15 maio, 2009 disse...

Mais um ensaio da orquestra desafinada devido a teoria e nenhuma prática voltada ao povo.
É o Brasil passageiro imitando seu presidente, que voando é só passageiro...
Pena o passageiro transforme em vendaval a sua passagem arrastando ao lodo a ética e a moral da nação.

Murilo Cunha on 25 maio, 2009 disse...

Ursula, KLM & Julio:
Fiquei em dúvida se devia postar uma mensagem tão extensa. Pensei novamente e ví que ela era muito importante para o entendimento da realidade das nossas pobres bibliotecas públicas. Acho que valeu a pena. Só espero que essa atual realidade seja "passageira" como bem falou o Julio em seu comentário poético.
Murilo Cunha

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